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Com a criação deste blogue, o autor visou proporcionar um modesto contributo na busca da melhor resposta a várias questões jurídicas controversas.

A descrição, em traços gerais, dos temas abordados, não pretende ser exaustiva, nem dispensa a consulta de um Advogado.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Crimes contra animais de companhia – gestão do local do crime

 

Fonte: Google Imagens

    Como sabemos, os crimes contra animais de companhia [ps. e ps. pelos art.ºs 387.º e 388.º do Código Penal (CP) Português] foram aditados pela Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto, que entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2014.

    Consultando o Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça (SIEJ), verificamos que, desde a sua entrada em vigor até ao final do ano de 2023, foram registados, pelas autoridades policiais, 16.455 crimes contra animais de companhia.


    Porém, ao consultarmos as condenações nos tribunais judiciais de 1.ª instância, verificamos que entre 2015 e 2022 houve apenas 562 condenações, ou seja, dos casos registados pelas autoridades, apenas cerca de 3,84% resultaram em condenação.


    Entre os motivos que poderão justificar esta percentagem tão reduzida, estará certamente a falta de preservação imediata e meticulosa da prova no local do crime. 

    É fundamental reconhecer que a primeira intervenção dos órgãos de polícia criminal (OPC), na cena do crime, é um momento crucial para o sucesso da investigação. Por este motivo, e sem a pretensão de exaurir o tema ou de oferecer uma versão definitiva, proponho alguns procedimentos a adoptar no caso em que os OPC se deparem com:

A) Morte de animal de companhia [1] [2]                                                                              
[1] Quer seja morte dolosa ou morte resultante dos maus tratos físicos ou do abandono. 
[2] Embora o crime de morte e maus tratos de animais de companhia, p. e p. pelo art.º 387.º do CP, contenha um tipo doloso, não podendo ser punido a título negligente (cfr. art.º 13.º do CP), sugerimos os seguintes procedimentos também para condutas aparentemente negligentes, v. g., morte de um animal de companhia por atropelamento.

No caso de atropelamento (ainda que negligente), quem atropela fica investido de um especial dever de garante, por ingerência, resultante da sua conduta. Assim, na eventualidade de o animal não morrer com o embate, quem atropela, fica vinculado ao dever jurídico de agir, devendo adoptar medidas adequadas a evitar a morte do animal.

Se, e. g., um animal de companhia não morre imediatamente após o impacto, mas devido aos coágulos sanguíneos que lhe bloquearam as vias aéreas (por não ter sido socorrido atempadamente), quem atropela comete o crime de morte e maus tratos de animal de companhia por omissão, nos termos dos art.ºs 10.º n.ºs 1 e 2, e 387.º n.º 1 do CP.

Só assim não seria, se fosse evidente, ou pelo menos muito provável que, mesmo com a conduta adequada, o animal teria morrido na mesma (neste caso, o comportamento lícito alternativo tornaria irrelevante a omissão da conduta adequada). Para verificação do nexo de causalidade entre a omissão da conduta devida e o resultado morte (ou a inevitabilidade do resultado) é importante um relatório de necropsia.

 isolamento e delimitação (v. g., com fita de interdição policial) dos locais que possam conter vestígios do crime, proibindo, se necessário a entrada ou trânsito de pessoas naqueles locais [art.º 171.º n.º 2, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª a), ambos do Código de Processo Penal (CPP)];

 presença imediata do médico veterinário municipal para confirmação do óbito do animal e realização de exame sumário ao hábito externo;

● reportagem fotográfica precisa e minuciosa (do espaço físico e do animal, incluindo os vestígios sinalizados); [3]

[3] O ideal seria que as câmaras fotográficas possuíssem tecnologia RAW ou HASH como garantia de autenticidade da imagem e do processo de arquivamento.

acondicionamento do animal, selagem hermética, e etiquetagem do invólucro de transporte (o processo deve ficar registado nos autos como garantia de integridade e inalterabilidade da prova);

 preservação de prova / medidas cautelares e de polícia;

Pode incluir:

 recolha de resíduos de disparo de arma de fogo; de vómito ou isco em caso de envenenamento; de vestígios lofoscópicos; etc;

 a obrigação de algumas pessoas permanecerem no local do crime (se necessário com o auxílio da força física) caso a sua presença seja indispensável [art.º 173.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª a), ambos do CPP];

→ identificação de suspeitos, art.º 250.º do CPP;

 colheita de informações úteis relativas ao crime, cfr. art.ºs 249.º n.º 2 al.ª b) e 250.º n.º 8, ambos do CPP;

→ apreensão de objectos nos termos do art.º 178.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª c), ambos do CPP (sem esquecer a sujeição a validação no prazo máximo de 72 horas);

 revistas e buscas, art.º 251.º n.º 1 al.ª a) do CPP.

 transporte do cadáver para local de preservação e armazenamento (arca frigorífica); ou

 contacto imediato com o magistrado do Ministério Público para determinação da necropsia. Neste caso, é efectuado o transporte imediato para o local onde a necropsia vai ser realizada (v. g., Faculdade de Medicina Veterinária), acompanhado de cópia do auto de notícia e do despacho que determinou. [4]

[4Qualquer transporte (seja para o local de preservação e armazenamento, seja para o local da necropsia) deve ficar devidamente documentado (quem transportou, a data e a hora do transporte e as condições em que a prova foi mantida durante o transporte).


Cadeia de custódia

    Como já deixámos transparecer, também nos crimes contra animais de companhia é fundamental assegurar a cadeia de custódia da prova através de procedimentos rigorosamente estabelecidos para assegurar a integridade, a autenticidade e a validade das provas desde o momento de sua recolha até sua apresentação em juízo.

    Este controle meticuloso é essencial para garantir que as provas permaneçam imaculadas, sem qualquer tipo de adulteração, contaminação ou manipulação, o que poderia comprometer os princípios constitucionais da busca da verdade material e da realização da justiça.


B) Maus tratos de animal de companhia (sem o resultado morte) e abandono

● reportagem fotográfica do espaço físico (se for o próprio alojamento do animal, deve incluir os equipamentos de alimentação e abeberamento), do animal e de eventuais vestígios sinalizados [recomendam-se pelos menos 5 fotografias ao animal (vistas lateral direita e esquerda, frontal, rectaguarda e superior, para evidenciar eventual magreza); [5]

[5] No caso de a cena do crime ser o próprio alojamento do animal, deve-se descrevê-lo, com alguma minúcia [referindo qual a sua natureza (v. g., jaula, corrente), dimensão, grau de protecção face a condições climáticas adversas, ventilação, condições de higiene, se possui um local seco e limpo para o animal descansar, etc.).

No caso de abandono, é importante também descrever onde concretamente o animal foi encontrado (junto a uma associação zoófila, numa varanda, num terreno isolado, dentro do veículo, etc.).

 preservação de prova / medidas cautelares e de polícia [6]

[6] Pode incluir todas as medidas indicadas na secção anterior para os casos de morte. Destacamos aqui a colheita de informações úteis relativas ao crime [cfr. art.ºs 249.º n.º 2 al.ª b)250.º n.º 8, ambos do CPP], sobretudo no crime de abandono, dada a sua importância no apuramento das circunstâncias em que o animal foi abandonado (descrição da viatura que o transportou, da pessoa que o abandonou, etc.) e na concretização do perigos concretos (para a alimentação do animal e prestação dos cuidados que lhe são devidos, e para a sua vida) exigidos pelo art.º 388.º do CP.

Não podemos esquecer que, havendo perigo evidente para a vida do animal (v. g., animal com golpe de calor causado pelo calor extremo no interior de um veículo) ou perigo declarado pelo médico veterinário, as autoridades policiais estão legitimadas, ao abrigo do “estado de necessidade” (art.º 339.º n.º 1 do Código Civil), para ultrapassar obstáculos (v. g., quebrar o vidro de uma viatura), de modo a evitar que o perigo se transforme em dano efectivo.

Em casos menos urgentes, mas devidamente fundamentados, pode ser determinada a realização de busca, incluindo domiciliária, nos termos dos art.ºs 174.º n.º 2 e 177.º n.º 1 do CPP). A busca (não domiciliária) pode partir da iniciativa do próprio OPC quando haja flagrante delito e consequente detenção [art.ºs 174.º n.º 5 al.ª c), 255.º n.º 1 al.ª a) e 256.º n.ºs 1 e 2, todos do CPP].

● presença do médico veterinário municipal para realização de exame directo ao estado do animal (verificando, inter alia: existência de lesões compatíveis com traumas não acidentais, condição física, peso, características, vacinação, doenças, infecções, parasitas, existência de transponder); [7]

[7] O Ministério Público, tendo em vista a dedução da acusação, poderá solicitar um novo exame médico-veterinário para apurar a duração da doença e/ou do tratamento, e se houve alguma sequela ou consequência física permanente.

 Nos casos em que são evidentes os maus tratos:

 apreensão do animal; com

 termo de entrega para assistência médico veterinária, ou

 termo de entrega e nomeação de fiel depositário para acolhimento (em centro de recolha oficial ou em associação zoófila), cfr. art.º 178.º n.º 1, ex vi art.º 249.º n.º 2 al.ª c), ambos do CPP;

 sujeitar a apreensão a validação (art.º 178.º n.º 6 do CPP);

 “requerer”, desde logo, ao Ministério Público, que, após a assistência médico veterinária (caso ela exista), ordene a afectação do animal (dada a sua natureza perecível) a uma finalidade socialmente útil, nomeadamente a adopção por pessoa idónea, nos termos do art.º 185.º n.º 1 do Código de Processo Penal, cjg. com art.º 201.º-D do Código Civil. [8]

[8Isto porque o animal apreendido carece de cuidados regulares que favoreçam o seu desenvolvimento e uma vida adequada à sua espécie e sensibilidade (o que é incompatível com a apreensão duradoura à ordem de um processo penal).

 No caso abandono [seja ele criminal ou contraordenacional, art.º 68.º n.º 2 al.ª c) do Decreto-lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro], existe perda de posse do titular do animal e a consequente possibilidade de aquisição, por ocupação, por parte de terceiros, cfr. art.ºs 201.º-D, 1267.º n.º 1 al.ª a)1318.º, todos do Código Civil.

Havendo fortes indícios de abandono (criminal ou contraordenacional), entendemos que os titulares dos Centros de Recolha Oficial (CRO) não carecem de esperar que, no período de 15 dias, o animal não seja reclamado pelo seu proprietário, nos termos do art.º 11.º n.º 5 do Decreto-lei n.º 82/2019, de 27 de Junho, e do art.º 8.º n.º 4 da Portaria n.º 146/2017, de 26 de Abril (já que este prazo se traduz numa presunção legal de abandono e este já foi confirmado factualmente), podendo, desde logo, registá-lo em seu nome no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC).                                                                          

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3 comentários:

  1. Francisco Rodrigues19 junho, 2024 09:54

    Excelente como sempre.

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  2. Prezado Dr. Paulo Soares,

    É com imensa admiração que me dirijo a si para expressar a minha gratidão pela inestimável contribuição que seus artigos proporcionam ao debate jurídico contemporâneo. Cada texto seu é um convite ao pensamento crítico e ao aprofundamento do saber, características que são a essência do verdadeiro espírito intelectual.

    Com a mais elevada estima,

    Pedro Santos

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